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13 de dezembro de 2010

Kierkegaard e a filosofia da religiao pós-hegeliana

Kierkegaard e a filosofia da religiao pós-hegeliana


Dentre todos os herdeiros de Hegel, um parece especialmente deslocado: Kierkegaard. Afinal, além dele ser dinamarquês (e não alemão), a tradição filosófica parece não ter legado a ele o posto de um pós-hegeliano como os demais, mas sim o lugar de um autor atormentado, que não sabe definir precisamente se o que realiza é filosofia, literatura ou teologia. Entretanto, Löwith o elenca, por sua temática e por seus escritos entre os herdeiros de Hegel:

“A definição particular que ele deu a sua ‘atividade de escritor’, a saber ser um autor ‘na fronteira entre o literário e o religioso’, não somente o distingue, mas o reaproxima da atividade literária dos hegelianos de esquerda que evoluíram à fronteira entre a filosofia e a política ou a política e a teologia”[1].

Diferentemente de Stirner, que preconiza o eu-único individual, que conduz a um egoísmo niilista, a temática do indivíduo em Kierkegaard aproxima-se de um niilismo melancólico e irônico, na fronteira entre a angústia da escolha e o desespero da descrença. Na sua forma passiva, tal desespero aparece sob a forma da loucura e na sua forma ativa, sob a forma do suicídio. Entretanto, a filosofia kierkegaardiana dirige um convite ao indivíduo, que nada é, para olhar-se na sua própria subjetividade e lançar-se diante do absoluto que, contrariamente ao que pensava Hegel, não reside na história, mas num totalmente outro. Assim, diante do absoluto, decidir pela fé ou desesperar-se.

Segundo Löwith, Kierkegaard não leu a obra de Stirner e também há muito pouca probabilidade de ter lido as obras de Bruno Bauer. Sabe-se, entretanto, que ele tomou contato com a obra de Strauss e de Feuerbach. O autor dinamarquês concordava plenamente com a dissolução da teologia na obra feuerbachiana. No seu modo de entender, isso era apenas uma conseqüência direta da filosofia da religião de Hegel. Ele, assim como o autor de A Essência do cristianismo, não aceitava que a fé cristã fosse retirada do interior do paganismo. Aos seus olhos, tal atitude não fazia justiça nem ao cristianismo e nem ao paganismo.

Sua simpatia para com a filosofia de Feuerbach é dupla: por sua crítica à filosofia da religião de Hegel e por sua crítica à cristandade. Tanto Kiekegaard como Feuerbach ficaram alarmados com a secularização do protestantismo, com a perda da dimensão crística do cristianismo moderno. Feuerbach é adotado pelo autor dinamarquês como teólogo do segundo percurso kierkegaardiano[2], tal como afirma Vergote[3]. Ele é usado estrategicamente pelo autor dinamarquês para dissolver a ilusão da cristandade, como é possível atestar na Essência do cristianismo do pensador alemão:

“O cristianismo moderno não pode apresentar mais nenhum testemunho a não ser testemonia paupertatis. O que ele ainda possui não possui de si, vive de esmolas dos séculos passados. Fosse o cristianismo moderno um objeto digno da crítica filosófica, poderia então o autor poupar o esforço da meditação e do estudo que lhe custou seu trabalho”[4].

Ou ainda por esse trecho dos Diários de Kierkegaard:

“Heine[5], Feuerbach e escritores semelhantes são, de qualquer maneira, de grande interesse para um experimentador. Geralmente eles entendem muito bem do religioso; quer dizer: eles entendem perfeitamente que não querem ter nada a ver com ele. Com isso, eles se destacam com grande vantagem frente aos sistemáticos que, sem compreenderem nada do religioso..., tratam, de maneira sempre feliz, de sua explicação”[6].

Kierkegaard admira intensamente a paixão de Feuerbach pelo seu tema- assim como admira a paixão de Pascal pelo seu tema[7]. A paixão conduz o pensador sempre à prática e esta é, no seu entender, a essência do cristianismo. Há, em ambos os pensadores, um retorno a Lutero. Feuerbach, por intermédio da humanização e Kierkegaard pela ênfase na prática e na apropriação subjetiva da verdade na interioridade de cada indivíduo.

No entender de Kierkegaard, a subjetividade se constituia não somente no ponto principal da religião, mas a mesma precisa adquirir um sentido diferente daquele que lhe é costumeiramente conferido pela concepção hegeliana que julgava que Deus existia no pensamento. No Post-Scriptum de 1846, o autor dinamarquês, sob a pena do pseudonímico Clímacus[8], já apontava a subjetividade como fator decisivo do religioso e do tornar-se cristão:

“Mas a paixão do infinito é precisamente a subjetividade e, dessa forma, a subjetividade é a verdade. Do ponto de vista objetivo, não há decisão infinita e, dessa forma, é objetivamente correto que a decisão entre bom e mau seja cancelada...”[9].

Ser subjetivo, no entender kierkegaardiano, consiste numa experiência de reapropriação do seu próprio eu e não em algo arbitrário ou irracional. Há no Post-Scriptum afirmativas atestando que “a subjetividade é a verdade”. Contudo, deve-se aqui manter a cautela. Em outras palavras, somente o indivíduo existente, e que se assume enquanto tal, pode reapropriar-se da sua subjetividade. A subjetividade se constitui numa verdade sempre que reapropriada pelo indivíduo. Deus é compreendido por aquele que se apropria dele. Todavia, para aquele que não se reapropriou da sua subjetividade e não se assumiu enquanto um ser existente, o próprio autor alerta, na mesma obra, que a subjetividade é a não-verdade:

“Visto socraticamente, a subjetividade é a não-verdade para quem se recusa compreender que a subjetividade é a verdade mas quer, por exemplo, tornar-se objetivo”[10].

Kierkegaard critica o cristianismo filosófico, tal como deseja Hegel, e vê nele, na Igreja, no Estado, na teologia e na especulação, sintomas da decadência do crístico. Contudo, sua oposição a Hegel é algo muito mais intenso do que simplesmente uma oposição entre o ponto de vista subjetivo e a posição objetiva. Para Löwith, a diferença entre ambos reside na compreensão da história:

“Apesar dessa ênfase na paixão, a oposição decisiva entre Hegel e Kierkegaard não se situa na colocação polêmica da subjetividade apaixonada frente à razão objetiva, e sim na concepção que eles têm da relação da história para com o cristianismo. Kierkegaard sentiu a relação da verdade eterna para com o processo da história como um dilema que ele tentava solucionar paradoxal-dialeticamente. Hegel pôs o absoluto do cristianismo na história universal do espírito, de modo que não pudesse ocorrer uma ruptura entre ambos. Na medida em que Kierkegaard pensa, por outro lado, a contradição que consiste em que uma felicidade eterna deve edificar-se sobre um saber histórico, ele tem de querer a subjetividade da apropriação do cristianismo em contraposição à sua irradiação histórica, e tem de apresentar um conceito de história que ignora o poder objetivo do acontecer e perverte o sentido histórico. É desta história subjetivizada em vistas à apropriação que deriva o conceito da historicidade da ontologia existencial (Heidegger) e da filosofia da existência (Jaspers)”[11].

Desse modo, na concepção kierkegaardiana, o cristianismo não é, pois, relato histórico, mas uma possibilidade que se abre diante de cada indivíduo. O cerne passa a ser a paixão. Alguém pode ser um apaixonado e não ser um cristão, tal como Feuerbach, e nem por isso sua paixão terá menor valor. Entretanto, no cristianismo, independentemente da paixão do indivíduo, a verdade do objeto é válida por ele mesmo, pelo Deus que lhe é exterior.

Se a verdade é subjetiva e deve ser reapropriada por cada indivíduo, a comunicação dela só pode ocorrer, para o pensamento kierkegaardiano, de maneira indireta. Com efeito, a comunicação do crístico se dá por meio do testemunho, isto é, do sofrer pela verdade que se possui subjetivamente. O ataque kierkegaardiano à cristandade é ambíguo, pois ele é feito ora se afastando do ser cristão, ora de dentro das estruturas do cristianismo. Trata-se de uma estratégia socrática e irônica, de confundir o adversário, mostrando a vacuidade de suas afirmações e, ao mesmo tempo, indagando sobre o que significa o cristianismo.

Para que melhor se entenda a concepção cristã de Kierkegaard convém observar sua obra Migalhas Filosóficas, pois é lá que aparece, de forma singular, o conceito de paradoxo e a idéia de que a história humana deve ser vista pela perspectiva do eterno[12]. O cristianismo só é aceitável por causa do paradoxo ou pela força do absurdo, conforme observava Tertuliano. Tal cristianismo se constitui em escândalo, por ferir a lei, e em loucura, por encontrar-se fora da concepção racional. Somente é possível aproximar-se dele através de um outro, e através da experiência apaixonada.

A tese central das Migalhas Filosóficas é transmitida comparativamente com a idéia de verdade socrática. Contrariamente ao que pensavam os antigos gregos, que julgavam que a verdade reside no próprio ser, o autor pseudonímico Clímacus afirma a fundamentação da verdade não dentro do próprio ser, mas num totalmente outro, sendo, ele mesmo, a verdade e a condição para compreendê-la[13]. Por isso, não há saída socrática ou maiêutica possível.

A promessa de continuar a tratar do problema da felicidade eterna e da verdade histórica, feita de forma propositalmente irônica e displicente no final das Migalhas Filosóficas, é cumprida no Post-Scriptum e ampliada, tornando esta uma das maiores obras do corpus kierkegaardiano. Assim como são ampliadas suas críticas ao pensamento hegeliano. Segundo ele, o grande erro de Hegel é que o autor alemão se esquece, ao escrever, de que é uma pessoa real e age como se não tivesse existência. Em outros termos, abre mão de sua condição de pessoa existente[14]. Entretanto, no entender de Paul Ricoeur, a relação entre Kierkegaard e Hegel precisa ser repensada através de um novo prisma interpretativo:

“Agora estamos prontos para um último confronto no qual se reflete, para nós, o conflito, dramático, existencial, que opõe totalmente Kierkegaard a Hegel. Esse último confronto nos conduz a nosso ponto de partida. Partimos de uma oposição simples e ingênua entre Kierkegaard e Hegel. Essa oposição não pode ser contestada.

Não se trata de atenuá-la, mas de pensá-la como uma oposição significante. Essa oposição faz parte da compreensão de Kierkegaard. Ela significa que Kierkegaard, decididamente não pode ser compreendido sem Hegel. O fato de ser impensável sem Hegel não é apenas um traço biográfico, um encontro fortuito, mas uma estrutura constitutiva do pensamento kierkegaardiano. Compreender corretamente essa situação paradoxal é a condição última de uma nova leitura de Kierkegaard”[15].

Contrariamente ao que acreditava Marx, que afirmava que o homem é o proletariado que se realiza em grupo, Kierkegaard é crítico da existência comunitária e do princípio associativo que unia os movimentos sociais reinvindicatórios. No seu entender, o importante não é a igualdade entre os homens, mas a afirmação da individualidade cristã. Nesse sentido, ele afirma o eu-mesmo individual como humano absoluto, isto é, como indivíduo. Na visão kierkegaardiana, o homem é um indivíduo diante de Deus (e não do seu egoísmo), para tanto, ele deve imitar a Cristo.

Nietzsche completa esse longo percurso da crítica da filosofia da religião hegeliana. Sua crítica da moral e da cultura cristã são pontos centrais na crítica da religião até os dias atuais. No entender nietzschiano, é preciso, antes de mais nada, perguntar-se sobre o que significam os conceitos de pecado e falta. Para ele, tais conceitos são meramente fictícios e imaginários, isto é, não possuem referentes reais, antes existem apenas na consciência humana. E mesmo nada sendo, eles serviram, durante séculos, para explicar o sofrimento humano. Dessa forma, no seu entender, é preciso empreender uma gênese dos conceitos formadores do cristianismo, é preciso negar com veemência toda a forma anti-natural de vida, toda a forma que nega a vida. Por isso, nesse sentido, o cristianismo precisa ser negado.

Sua preocupação é reconstituir a gênese do cristianismo. Nessa busca, ele percorre um longo caminho até a chegar a sua última obra, a saber, o Anticristo. A obra nietzschiana foi recolhida- em seus muitos fragmentos- por seu amigo- e professor de história eclesiástica- Franz Overbeck, em Janeiro de 1889, por ocasião do seu colapso. Nela vislumbra-se aquilo que historicamente se denominou como o ápice da filosofia nietzschiana. Entretanto- para além de convenções- é profundamente instigante a capacidade que o filósofo tem de se colocar como um psicólogo da cultura. Muito mais proveitoso do que considerar essa obra como o ponto culminante da filosofia nietzschiana, talvez seja o fato de considerá-la como o lugar onde a humanidade decadente poderá efetivamente chegar. Mesmo com a dúvida que Overbeck lança sobre as suas premissas- de que seu autor talvez estivesse equivocado em julgar que o cristianismo é uma mera continuação do Império Romano- e com todos os recortes de cunho ideológico feitos por sua irmã Elisabeth Förster Nietzsche, essa obra apresenta uma peculiar leitura do cristianismo e diálogo com seus grandes pensadores. É possível perceber nela uma forte influência de Dostoievski, Tolstói e Renan. Os dois primeiros romancistas russos influenciam diretamente Nietzsche através de suas obras Os Demônios, O Idiota (ambas de Dostoievski) e Minha religião de Tolstói. Percebe-se nelas o tom que Nietzsche transmite de um cristianismo anárquico e em oposição à Igreja. Aliás, o próprio conceito de idiota- que significa, em grego, aquele que ignorou o mundo- o filósofo confere a Jesus Cristo, tomando-o por empréstimo do escritor russo[16]. Já Ernest Renan será criticado por sua obra A Vida de Jesus[17].

A primeira dificuldade que surge no exame do Anticristo é saber quem seria – ou se denominaria- de tal modo. Antes de examinar a questão na obra do pensador, cabe uma ressalva: a palavra Der Antichrist significa, em idioma alemão, não somente o Anticristo, mas aquele indivíduo que é anti-cristão. Já no idioma grego, a palavra evoca uma série de outras significações, não se trata meramente de alguém que é contrário a algo, mas de alguém que se coloca como uma alternativa. Deve-se notar que tal significado foi perdido no idioma latino, mas não deve esquecer que Nietzsche era um filólogo e profundo conhecedor desses idiomas. Para além da sutileza filológica, é importante perceber o significado teológico do termo. Trata-se não apenas da figura do diabo- no sentido cristão- mas de um indivíduo singular que se coloca como o adversário de Deus[18]. Sua afirmação em torno da morte de Deus significa, portanto, uma afirmação também contra a cultura e a herança filosófica protestante e hegeliana, tal como salienta Löwith:

“Como Feuerbach e Kierkegaard, Nietzsche combate, na obra de Hegel, a tentativa de ultrapassar esta incompatibilidade entre nosso mundo, que se tornou profano, e a fé cristã”[19].

Segundo Nietzsche, Hegel e os neo-hegelianos são, na verdade, semi-pastores e cada qual, ao seu modo, segue um trabalho de junção entre filosofia e religião. Por isso, muito ironicamente, no entender nietzschiano, o protestantismo é o avô da filosofia alemã:

“Entre os alemães sou compreendido imediatamente quando digo que a filosofia está corrompida pelo sangue de teólogos. O pároco protestante é o avô da filosofia alemã, e o próprio protestantismo é o seu ‘pecatum originale’”[20].

Dessa forma, ainda que com sua peculariedade, Nietzsche se constitui, juntamente com Feuerbach e Kierkegaard, como um importante autor para a crítica da cristandade e do cristianismo. Seu legado é claramente perceptível na teologia e na filosofia protestante que o sucedem, notadamente nos autores da neo-ortodoxia protestante como Karl Barth e Paul Tillich. Os temas centrais de sua gênese e crítica do cristianismo coincidem com diversos aspectos da temática kierkegaardiana concernente ao cristianismo.

A denúncia nietzschiana dirige-se tanto ao protestantismo da filosofia alemã como ao ateísmo filosófico proveniente da teologia protestante. Afinal, para ele, a segunda não é mais é do que uma continuidade e aprofundamento da primeira. Todavia, Nietzsche, como observa Löwith, também não consegue escapar do cristianismo e da compreensão germânica acerca dele:

“Mas Nietzsche não ultrapassa, de modo algum, o cristianismo. Seu Anticristo testemunha, e mais ainda, ele é a contrapartida do Anticristo: a doutrina do eterno retorno. Ela é um sucedâneo da religião, ela é, não menos que o paradoxo cristão de Kierkegaard, uma saída para o desespero: uma tentativa de ir do nada para alguma coisa”[21].

Overbeck, célebre amigo de Nietzsche, submeterá o cristianismo decadadente a uma análise histórica. Segundo seu entender, a teologia é uma traição ao cristianismo primitivo que era simplesmente uma espera pelo retorno do Messias. A entrada da filosofia, notadamente dos gnósticos como Clemente e Orígenes alteraram a essência do cristianismo, tornando-o uma mistura da antiga fé hebraica com os conceitos gregos de conhecimento. Tal alteração propagou-se pela antigüidade tardia, durante o final do Império Romano, e teve seu apogeu durante a Idade Média.

Na sua obra Cristicidade da teologia atual, ele diferencia a história original da história decadente. O protestantismo se configura, aos seus olhos, como uma mera reação ao catolicismo e como uma secularização da fé original. Todavia, a despeito da semelhança de seu conceito de crístico com as teses de Kierkegaard, a posição de Overbeck é crítica em relação a Kierkegaard, este também crítico do protestantismo:

“Eu vou assim estabelecer as coisas totalmente diferente de Kierkegaard, que atacou o cristianismo e tudo o que ele representava, ao passo que eu me guardo de combatê-lo, visto que eu me situo de fora, falando de teologia, visto que me recuso a ser um cristão. Kierkegaard fala sob a capa paradoxal do reformador do cristianismo. Esta não é a minha questão, não é a questão de reformar a teologia, que eu considero meu domínio. Eu tenho, sem nenhum a priori, não defendido suas bases e nem contestado que ela esteja atualmente completamente morta. Quanto ao cristianismo, eu o abandono a si mesmo por um momento”[22].

No entender de Overbeck, tanto Kierkegaard como Feuerbach são maus representantes do cristianismo e não possuem autoridade para atacá-lo. A guerra que Kierkegaard move contra o cristianismo é, segundo ele pensa, um embuste:

“Aparentemente, Kierkegaard vai, ele mesmo, para a guerra contra o cristianismo. Ele próprio é mal qualificado para atacar o cristianismo e, num certo sentido, menos ainda que seus adversários. Um mau representante do cristianismo não tem mais direito de atacá-lo do que um representante inatacável, inatacável mesmo aos seus próprios olhos”[23].

Já quanto à obra de Bauer, Overbeck, a despeito de considerá-lo fraco cientificamente, aprecia sua crítica acerca do cristianismo bíblico. Em Strauss, sublinha méritos, defendendo-o da ortodoxia. Entretanto, no entender de Overbeck, seus estudos sobre mitos e dogmas não conseguem examinar uma história original do cristianismo.

Todavia, diferentemente de Nietzsche, seu amigo, Overbeck não se ocupa com a temática da moral. Seu objetivo é estudar- e resgatar- o que foi o cristianismo primitivo. Para ele, o catolicismo ainda possui os seus mosteiros e sua vida religiosa; já o protestantismo, sem mosteiros e vida religiosa, é a completa secularização de tudo. Por sua temática, Overbeck é um pensador na fronteira entre ser contrário ao cristianismo e ser favorável à civilização e à cultura profana. Tal traço não deixa de ser uma marca distintiva de toda uma geração, dos assim denominados pós-hegelianos.

Kierkegaard encontra-se, de forma inegável, entre eles. Sua crítica à cristandade e sua busca apaixonada pelo crístico são claros indicadores disso. Todavia, ao contrário de Marx, que enfatizou a importância do proletariado consciente e revolucinário para a tomada do poder político, o autor dinamarquês enfatiza o indivíduo e sua subjetividade em meio a uma sociedade de massas, onde o crístico parece estar sepultado e ter perdido sua real dimensão, que é, no entender kierkegaardiano, superior aos dados históricos e objetivos:

“Pouco antes da revolução de 1848, Marx e Kierkegaard dão às suas duas vontades uma expressão que guarda hoje ainda toda sua força: Marx no ‘Manifesto Comunista (1847) e Kierkegaard na ‘Resenha Literária’(1848). No manifesto de Marx encontra-se: ‘Proletários de todos os países, uni-vos! E na Resenha que cada um deve trabalhar por si mesmo, para sua própria saúde e qualquer profecia que anuncia o progresso do mundo é risível. Considerada historicamente esta antítese agrupa dois aspectos da vontade comum de destruição do cristianismo burguês. Para levar a revolução do capitalismo burguês, Marx se apoia sobre a massa do proletariado. Kierkegaard, para lutar contra o cristianismo burguês, conta somente com o indivíduo. Dessa forma, Marx considera a sociedade burguesa como uma sociedade de indivíduos isolados e Kierkegaard compreende a cristandade atual como um cristianismo de massa, onde ninguém é discípulo de Jesus”[24].


Por Marcio Gimenes de Paula - Universidade Mackenzie

[1] [1] LÖWITH, Karl. De Hegel à Nietzsche, tradução de Rémi Laureillard, Gallimard, Paris,1969, p. 92.

[2] Kierkegaard inicia uma instigante leitura de Feuerbach, a partir de pressupostos cristãos. Tal processo terá continuidade no século XX na obra do teólogo Karl Barth- que escreve uma introdução para edição norte-americana da Essência do Cristianismo de Feuerbach- e em muitos outros pensadores.

AMERIKS, Karl. The legacy of idealism in the philosophy of Feuerbach, Marx and Kierkegaard em The Cambridge Companion to The German Idealism, Karl Ameriks (org.), Cambridge University Press, Cambridge, 2000.

BARTH, Karl. An Introductory Essay em The Essence of Christianity, Ludwig Feuerbach, Harper, New York, 1957.

BARTH, Karl. Protestant Theology in the Nineteenth Century, translated by Brian Cozens and Jonh Bowden, Eerdmans, Grand Rapids, 2002.

CHAMBERLAIN, William B. Heaven wasn’t his destination- the philosophy of Feuerbach, George Allen and Unwin Ltd, London, 1941.

HARVEY, Van A. Feuerbach and the interpretation of religion, Cambridge University Press, Cambridge, 1995.
XHAUFFLAIRE, Marcel. Feuerbach et la théologie de la secularisation, Cerf, Paris, 1970.

[3] Tal afirmação é encontrável no segundo volume da seguinte obra:

VERGOTE, Henri-Bernard. Sens et Répétition I/II, Cerf, Paris, 1982.

[4] FEUERBACH, 1997, p. 20.

[5]Heinrich Heine (1797-1856) publica originalmente em francês, no ano de 1834, a obra Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha. Seu intuito era ensinar, especialmente ao público francês, acerca da importância da religião e da filosofia na Alemanha. Trata-se de um trabalho recheado da ironia peculiar do pensador.

HEINE, Heinrich. Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha, tradução e notas de Márcio Suzuki, posfácio de Wolfgang Wieland, Iluminuras, São Paulo, 1991.

[6] Apud: LÖWITH, 1969, pp.424/425.

[7] Maiores informações sobre a relação entre Kierkegaard e Pascal podem ser obtidas no artigo de André Clair Un auteur singulier face à un auteur singulier: Kierkegaard lecteur de Pascal

CLAIR, André. Kierkegaard- penser le singulier, Cerf, Paris, 1993.

[8] Maiores informações sobre essa obra serão fornecidos no primeiro capítulo deste trabalho.

[9] KIERKEGAARD, S.A. Concluding Unscientific Post-Script to Philosophical Fragments I/II, tradução de Edna e Howard Hong, Princeton University Press, New Jersey, 1992, v. I, p. 203.

[10] KIERKEGAARD, 1992, v.I, p. 207.

A reapropriação subjetiva é um tema bastante amplo na obra kierkegaardiana. Aqui faço apenas ressalvas que podem ser melhor observadas tanto no já citado Post-Scriptum como em Temor e Tremor (dentre outras obras).

[11] LÖWITH, 1969, pp. 428/429.

[12] Esta é a tese central das Migalhas Filosóficas e, posteriormente, do Post-Scriptum às Migalhas Filosóficas:

KIERKEGAARD, S.A. Migalhas Filosóficas ou um bocadinho da filosofia de Johannes Clímacus, tradução de Álvaro Luiz Montenegro Valls e Ernani Reichmann, notas de Álvaro Luiz Montenegro Valls, Editora Vozes, Petrópolis, 1995.

Essa temática será melhor analisada no primeiro capítulo deste trabalho.

[13] O pseudonímico Clímacus, autor da obra, cita o diálogo platônico Mênon como exemplo ilustrativo da concepção socrática.

[14]A relação de Kierkegaard e Hegel é uma das coisas mais complexas no pensamento do autor dinamarquês. É certo que Kierkegaard era um severo crítico da filosofia hegeliana. Entretanto, não se pode entender de forma adequada sua proposta filosófica se não se souber que seu pensamento é, em muitas ocasiões, profundamente relacionado ao pensamento de Hegel. James Collins aborda esse aspecto em sua obra. Vergote chega até mesmo a defender uma certa sistematização no pensamento de Kierkegaard, uma vez que o mesmo possuia uma estratégia e pseudônimos (devendo ser lida, sua obra, numa certa ordem). Westhphal aborda, em seu artigo, que em Kierkegaard não há uma irracionalidade ou recusa fortuita do sistema. Aliás, sua própria idéia de subjetividade equivalia a interioridade e jamais significou arbitrariedade. No idioma dinamarquês, inderlighed (interioridade) significava paixão, ardor, algo que é feito com profundo ânimo e vigor. Não se pode entender interioridade em Kierkegaard como algo fechado. Jamais se pode falar, a partir de Kierkegaard, de subjetivismo ou de verdade para cada indivíduo. Ao falar de subjetividade o pensador de Copenhague está pensando-a como uma verdade apropriada no interior do indivíduo. Com efeito, é uma relação de amor-ódio que necessitaria de uma ampla e específica pesquisa para melhor elucidação da mesma.

BENSE, Max. Hegel e Kierkegaard- una investigación de princípios, tradução de Guillermo Floris Margadant, Instituto de Investigaciones Filosóficas- Universidad Nacional Autónoma de Mexico, Mexico, 1969.

COLLINS, James. El pensamiento de Kierkegaard, 1ª edição, Fondo de Cultura Económica, México, 1958. (Especialmente o capítulo IV “Ataque al hegelianismo”)

THULSTRUP, Niels. Kierkegaard’s relation to Hegel, translated by George L. Stengreen, Princeton University Press, New Jersey, 1980.

VERGOTE, Henri-Bernard. Kairos/ Kierkegaard , Revue de Philosophie de la Faculté de Philosophie de l’Université de Toulouse- Le Mirail, v. 10, p.9-15, 1997 (Especialmente a introdução “Retorno de Kierkegaard/ Retorno a Kierkegaard”).

WESTPHAL, Merold. Kierkegaard and Hegel em The Cambridge Companion to Kierkegaard, editada por Alastair Hannay e Gordon D. Marino, 1ª edição, Cambridge University Press, Londres, 1998.

A polêmica tese que a subjetividade é a verdade tem inspirado alguns autores a enxergarem em Kierkegaard uma espécie de precurssor do pós-modernismo. Tal perspectiva é até defensável, apenas não se deve confundir o pensamento do autor dinamarquês, como já foi dito, com o subjetivismo:

EVANS, Sthephen C. Realism and antirealism in Kiekegaard’s Concluding Unscientific Postscript em The Cambridge Companion to Kierkegaard, ed. Alastair Hannay e Gordon D. Marino, 1998.

Colette também abordará tal temática.

COLETTE, Jacques. Kierkegaard et la non-philosophie, Gallimard, Paris, 1994. (Notadamente o capítulo III)

[15] RICOEUR, Paul. Filosofar após Kierkegaard em Leituras 2- A região dos filósofos, tradução de Marcelo Perrine e Nicolás Nyimi, 1ª edição, Edições Loyola, São Paulo, 1996, p. 39.

[16] Maiores informações podem ser obtidas em:

GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. O Anticristo e o romance russo, Primeira Versão, IFCH/UNICAMP, Campinas, 1994.

[17] RENAN, Ernest. Vie de Jésus, Arléa, Paris, 1992.

[18] Maiores informações podem ser obtidas em:

ALLMEN, J. J. Vocabulário Bíblico, tradução de Jaci Maraschin, 2ª edição, Aste, São Paulo, 1972.

[19] LÖWITH, 1969, p. 437.

[20] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo- maldición sobre el cristianismo, tradução e notas de Andrés Sánchez Pascual, 5ª reimpressão, Alianza Editorial, Madrid, 2002., p. 39.

[21] LÖWITH, 1969, p. 439.

[22] Apud: LÖWITH, 1969, p. 446/447.

[23] Apud: LÖWITH, 1969, p. 447.

[24] LÖWITH, 1969, pp. 190/191 

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