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11 de maio de 2010

Por que ler Dom Quixote ?

O que pode ter significado, como símbolo, no tempo em que foi escrito, tampouco nos deve pre­ocupar. "Dom Quixote não é uma Escritura Sagrada", cujo sentido literal, querido por Deus, é básico e indispensável para qualquer apli­cação futura.

Aqui, não. Trata-se de uma "novela", de gênero literário em que, segundo a brilhante lição de Ortega y Casset, se mistura mito e realidade; ficção onde entram dois mundos "incompreensíveis" e, por isso mesmo, se fica com a impres­são de topar, a toda hora, com o ri­dículo. A "novela" desse tipo é ne­cessariamente humorística, já que seus heróis vivem na terra, na so­ciedade real, que eles querem mu­dar, mas querem mudá-las trazen­do para cá os sonhos do mundo irreal, sem perceber que são irre­ais. É esse descompasso que pro­voca o riso, embora não torne a utopia, em si, risível. O riso não vem do ridículo do ideal. Mas da inadequação dos meios, da não percepção, por parte do herói (tal­vez até simpático, mas ensandeci­do), de que sonho é sonho, mito é mito, feijão é feijão, pedra é pedra. Moinho de vento é moinho de ven­to e não gigante encantado, e que gigantes encantados podem até existir (num outro mundo) e se combatem, mas não com lanças e escudos deste mundo sublunar.

Outra lição do Quixote é que, aqui no mundo real, há pessoas capazes de fazer a perigosa confusão entre realidade e mito. Os so­cialistas, por exemplo, não só os chamados utópicos, mas os não menos enganados socialistas que intitularam “científicos”, são um dos últimos exemplos desse tipo de gente generosa e que se pode tornar furiosa e derrubar sangue, como fez várias vezes Dom Quixote. Sangue dos outros e sangue próprio.

Não sei quem foi que disse que a utopia é inofensiva, desde que se reconheça como utópica. Mas é pe­rigosíssima, quando pensa que pode passar aos fatos. Segundo Ortega, dois tipos de homens costumam estabelecer “ligações perigosas” entre o mujndo do mito, da ficção, da aventura, e o mundo da pesada realidade: os “simples”, os “ingênuos”, os manipuláveis, “desses que vemos dia inteiro, dias inteiros, ocupados no pobre afã de viver” e os “mentecaptos”, como Quixote, “que uma manhã abandona seu povoado, impelido por uma pequena anomalia anatômica de seus centros cerebrais” (Ortega). O "mentecapto", aqui, não é neces­sariamente o louco, no sentido comum do termo, mas aquele que per­deu a capacidade de discernir nitidamente entre o mundo da aventu­ra, da ficção, do mito, e o mundo da ação prática, da economia, da polí­tica, do homem concreto.

O homem homérico não corria esse perigo. Para o grego do tempo dos rapsodos, os deuses e heróis ti­nham existência própria, não eram símbolos, mitos, eram realidades do seu mundo. Eles não traziam esses seres, que hoje chamamos mitológi­cos, para o nosso mundo. O mundo dos heróis homéricos não era histó­rico: estava concluído em si. Não havia risco nenhum de confusão, de trazerem para nosso planeta e a nos­sa cidade daqui o que eles eram ou faziam lá. Essa é uma diferença substancial entre Homero e Cervan­tes. Cervantes mostra um homem novo, que os gregos antigos não conheciam, o homem que não mora completamente nem lá nem cá. O ho­mem moderno é menos "lógico" do que o grego. É um homem que aprendeu a fazer coisas, a criar arte­fatos, a imitar a natureza e substituí-­la pela técnica graças à ciência, e que, às vezes, acaba não sabendo mais onde termina o real e começa o fictí­cio ou o artificial.

A ciência pode ser usada pela razão ou pela ideologia. O homem moderno, que apostatou da metafísica, chega facilmente à morte do humano pelo assalto à razão por parte do ideológico. O homem ideologizado tem muito quixotis­mo, sem o balanceamento do bom senso de Sancho. Pode até estar defendendo belas utopias em fa­vor do homem, mas o faz de tal modo que esmaga o humano que pretende defender. E assim, pelas vias da "simplicidade" (falta de consciência crítica por desinfor­mação) ou pelas vias da "amên­cia" (perda de sensibilidade dian­te do real, por excitação sentimen­tal ou cegueira ideológica), se pode estabelecer um falso trânsi­to entre os dois continentes do mito e da realidade, que ameaça seriamente a sobrevivência do humano.

Por isso mesmo, não se pode ler Cervantes sem levar em conta a crescente sabedoria de Sancho Pança: ele que se deixou levar muitas vezes pelo seu amo pelos condutos da simplicidade, acabou por crescer em sabedoria graças à própria vivência e à sabedoria de Dom Quixote. Sem perder uns ares de sonhador, nunca deixava de puxar seu amo para o óbvio, a rotina, o realismo do real, A du­pla não poderia viver separada, pois de feijão e sonho se faz a exis­tência do homem sobre a terra.

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