O que pode ter significado, como símbolo, no tempo em que foi escrito, tampouco nos deve preocupar. "Dom Quixote não é uma Escritura Sagrada", cujo sentido literal, querido por Deus, é básico e indispensável para qualquer aplicação futura.
Aqui, não. Trata-se de uma "novela", de gênero literário em que, segundo a brilhante lição de Ortega y Casset, se mistura mito e realidade; ficção onde entram dois mundos "incompreensíveis" e, por isso mesmo, se fica com a impressão de topar, a toda hora, com o ridículo. A "novela" desse tipo é necessariamente humorística, já que seus heróis vivem na terra, na sociedade real, que eles querem mudar, mas querem mudá-las trazendo para cá os sonhos do mundo irreal, sem perceber que são irreais. É esse descompasso que provoca o riso, embora não torne a utopia, em si, risível. O riso não vem do ridículo do ideal. Mas da inadequação dos meios, da não percepção, por parte do herói (talvez até simpático, mas ensandecido), de que sonho é sonho, mito é mito, feijão é feijão, pedra é pedra. Moinho de vento é moinho de vento e não gigante encantado, e que gigantes encantados podem até existir (num outro mundo) e se combatem, mas não com lanças e escudos deste mundo sublunar.
Outra lição do Quixote é que, aqui no mundo real, há pessoas capazes de fazer a perigosa confusão entre realidade e mito. Os socialistas, por exemplo, não só os chamados utópicos, mas os não menos enganados socialistas que intitularam “científicos”, são um dos últimos exemplos desse tipo de gente generosa e que se pode tornar furiosa e derrubar sangue, como fez várias vezes Dom Quixote. Sangue dos outros e sangue próprio.
Não sei quem foi que disse que a utopia é inofensiva, desde que se reconheça como utópica. Mas é perigosíssima, quando pensa que pode passar aos fatos. Segundo Ortega, dois tipos de homens costumam estabelecer “ligações perigosas” entre o mujndo do mito, da ficção, da aventura, e o mundo da pesada realidade: os “simples”, os “ingênuos”, os manipuláveis, “desses que vemos dia inteiro, dias inteiros, ocupados no pobre afã de viver” e os “mentecaptos”, como Quixote, “que uma manhã abandona seu povoado, impelido por uma pequena anomalia anatômica de seus centros cerebrais” (Ortega). O "mentecapto", aqui, não é necessariamente o louco, no sentido comum do termo, mas aquele que perdeu a capacidade de discernir nitidamente entre o mundo da aventura, da ficção, do mito, e o mundo da ação prática, da economia, da política, do homem concreto.
O homem homérico não corria esse perigo. Para o grego do tempo dos rapsodos, os deuses e heróis tinham existência própria, não eram símbolos, mitos, eram realidades do seu mundo. Eles não traziam esses seres, que hoje chamamos mitológicos, para o nosso mundo. O mundo dos heróis homéricos não era histórico: estava concluído em si. Não havia risco nenhum de confusão, de trazerem para nosso planeta e a nossa cidade daqui o que eles eram ou faziam lá. Essa é uma diferença substancial entre Homero e Cervantes. Cervantes mostra um homem novo, que os gregos antigos não conheciam, o homem que não mora completamente nem lá nem cá. O homem moderno é menos "lógico" do que o grego. É um homem que aprendeu a fazer coisas, a criar artefatos, a imitar a natureza e substituí-la pela técnica graças à ciência, e que, às vezes, acaba não sabendo mais onde termina o real e começa o fictício ou o artificial.
A ciência pode ser usada pela razão ou pela ideologia. O homem moderno, que apostatou da metafísica, chega facilmente à morte do humano pelo assalto à razão por parte do ideológico. O homem ideologizado tem muito quixotismo, sem o balanceamento do bom senso de Sancho. Pode até estar defendendo belas utopias em favor do homem, mas o faz de tal modo que esmaga o humano que pretende defender. E assim, pelas vias da "simplicidade" (falta de consciência crítica por desinformação) ou pelas vias da "amência" (perda de sensibilidade diante do real, por excitação sentimental ou cegueira ideológica), se pode estabelecer um falso trânsito entre os dois continentes do mito e da realidade, que ameaça seriamente a sobrevivência do humano.
Por isso mesmo, não se pode ler Cervantes sem levar em conta a crescente sabedoria de Sancho Pança: ele que se deixou levar muitas vezes pelo seu amo pelos condutos da simplicidade, acabou por crescer em sabedoria graças à própria vivência e à sabedoria de Dom Quixote. Sem perder uns ares de sonhador, nunca deixava de puxar seu amo para o óbvio, a rotina, o realismo do real, A dupla não poderia viver separada, pois de feijão e sonho se faz a existência do homem sobre a terra.
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