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26 de março de 2011

pq o sofrimento importa para o Humanismo? ( doBule Voador)

Repassando para meus amigos...

Por que o sofrimento importa para o Humanismo?

Autor: Francisco Boni Neto
Vincent van Gogh, "Aos portões da eternidade" (1890)
Vincent van Gogh, "Aos portões da eternidade" (1890)
Eu começo com uma citação do O Rio que Saía do Éden (River Out of Eden) do Richard Dawkins:
“A quantidade total de sofrimento por ano no mundo natural está para além de qualquer contemplação decente. Durante o minuto que levo para escrever esta frase, milhares de animais estão sendo comidos vivos, outros correndo para salvar a própria vida, choramingando com medo, outros estão sendo lentamente devorados por dentro por parasitas; milhares de todos os tipos estão morrendo de fome, sede e doenças. [...] Em um universo de forças físicas cegas e replicação genética, algumas pessoas vão se machucar, outras pessoas estão terão sorte, e você não vai encontrar nenhum sentido ou razão para isso, nem qualquer justiça. O universo que observamos tem precisamente as propriedades que deveríamos esperar se não houver, no fundo, nenhum projeto, nenhuma finalidade, sem maldade e sem nada de bom, nada a não ser indiferença cega e impiedosa”.
A evolução otimiza o sucesso reprodutivo em vez de bem-estar individual. O resultado, como PhD em economia Yew-Kwang Ng argumenta em seu A Caminho de uma Biologia do Bem-Estar:  a Economia Evolucionária Aplicada à Consciência Animal e o Sofrimento , é um mundo no qual a maioria das espécies têm muito mais crias do que irão sobreviver até a maturidade (às vezes, pondo milhares ou milhões de ovos por ciclo). E mesmo para os sobreviventes, a vida implica uma constante luta para encontrar comida suficiente, evitar predadores, e superar a doença ou lesão por poucos breves anos (ou meses) antes que a morte venha nas mandíbulas de um predador ou ao serem pegos por um parasita. A dor é uma poderosa ferramenta de motivação, e a evolução não tem nenhum escrúpulo em usá-la para o efeito máximo.
A espécie humana se encontra em uma posição privilegiada entre a vida na Terra e talvez no cosmos em geral. Primeiro, nós experimentamos os altos e baixos emocionais, dores e prazeres que acompanham a vida dos animais sencientes em geral. Nós também somos produtos da evolução. Em segundo lugar, os seres humanos têm uma capacidade de empatia – imitar os estados cognitivos e emocionais de outros organismos e, em seguida, responder como se estivéssemos experimentando os sentimentos e pensamentos de outros. É como uma simulação e há evidências fortes para isso na neurociência. Embora esta característica seja partilhada em diversos níveis e tipos de experenciação subjetiva qualitativa, chegando até ser nula como no caso de psicopatas, ela também é encontrada por outras espécies, porém não parece ser um resultado inevitável do processo evolutivo e é provavelmente muito rara entre a vida, até mesmo vida inteligente, em todo o universo.
Finalmente, ao contrário de outras espécies empatas, os seres humanos têm as (ou estão em vias de desenvolvimento das) ferramentas tecnológicas não apenas, por exemplo, para adquirir alimentos e combater os inimigos, mas também para — usando a linguagem teleológica — desafiar o diretamente o próprio processo evolutivo. Nós podemos dar um sentido aparente para a evolução, mas como exposto na citação de Dawkins que usei como introdução, não há um sentido em si para os processos naturais, apenas um sentido teleonômico, fruto da nossa capacidade linguística e de consciência subjetiva individual: experimentamos o mundo através de uma construção mental com personalidade e memórias únicas que precisam de auto-referenciação e consistência para que possamos distinguir os limites sensoriais do nosso próprio corpo (propriocepção por exemplo) e nossas construções históricas. Há pessoas com condições neurológicas que não conseguem exercer tal capacidade. Pessoas com autotopagnosia não conseguem imitar certas ações motoras dos outros e, por vezes, não conseguem identificar os próprios dedos e lembrar de suas ações do ponto de vista motor. Alguns acham, por instantes, que não são donos das próprias mãos. Do ponto de vista evolutivo, uma experiência mental desse tipo é um desastre.
Uma ética aplicada sob o viés de valores humanistas tem compromisso não só com o sofrimento humano, mas com o sofrimento de todos os seres sencientes. Numa sociedade secular, para longe dos sistemas de valores religiosos e deontológicos, onde só as intenções importam e não se presta alguma atenção aos resultados práticos e empíricos das ações, é importante usar as ferramentas racionais que nós temos para definir o que é sofrimento. Não precisamos do Papa para dizer o que é moralmente válido, principalmente se você considerar que a concepção de castidade cristã e a intenção de ser sexualmente “puro” acaba gerando resultados desastrosos. Pensemos, será que o homem consegue sempre controlar suas pulsões sexuais? Será que o Papa não percebe que, ao disseminar a chamada “abstinência cristã” em detrimento do uso da camisinha, ele acaba espalhando o vírus HIV que, por conseguinte, aumenta as chances de sofrimento? Ou será que ele precisa do HIV para imputar aos gays a origem deste, como uma beneficência (punição) divina, como alguns mestres católicos sugerem? Tudo isso só porque, na concepção subjetiva do mesmo, a intenção de se manter casto é moralmente válida no âmbito terreno e espiritual, enquanto o mesmo cega-se para o sofrimento provocado por tal propaganda de abstinência? Eis a famosa compaixão cristã. Será que ele mesmo, na vida prática, segue isso? Certos padres não seguem, daí os muitos casos de abuso sexual dentro da Igreja Católica.
Em Uganda, a disseminação do pensamento de abstinência sexual cristã pode ter ajudado a diminuir alguns casos de transmissão do vírus HIV. Mas e os casos de quem não conseguiu manter-se casto e  teve encontros sexuais? E o que mais acaba acompanhando o proselitismo religioso, como a homofobia cristã, que agora suporta um governo conservador que aprova leis que estipulam a pena de morte para homossexuais? Para cada caso de sucesso dos católicos no combate à AIDS na África existem toneladas de outros casos que corroboram com a hipótese de que o cristianismo fundamentalista provoca, nesses países sub-desenvolvidos, mais sofrimento do que bem-estar. A idéia extende-se para todas as outras áreas. Será que nossas políticas econômicas, sociais e tecnológicas estão realmente aumentando nossas chances de sofrer menos?
O humanismo se importa com o sofrimento. Os seres humanos podem, pelo menos, prestar atenção e calcular as implicações das suas escolhas — sobre as mudanças ambientais na Terra e, especulativamente, na dispersão da vida senciente no nosso Planeta — na quantidade de sofrimento (e felicidade) darwiniano que será vivido pelos organismos individuais assim afetados. Acho que temos uma obrigação de exercer a nossa posição rara na história. Eu acho que não agir para ajudar os nossos semelhantes seria uma abdicação de uma oportunidade especial que nós humanos temos de substituir a “indiferença cega e impiedosa” da natureza com o melhor que a nossa empatia tem a oferecer.

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