IDENY ESCRITOS & TELAS

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5 de março de 2011

Eram vinte...(Ideny ditzel freitas)

Sim, eram vinte, eu fiz as contas. Era no total vinte parentes que não me viam há vinte anos. Parece até coisa programada, um ano por indivíduo.
A gente pode se safar de vê-los no Natal, no Reveion, na Páscoa ou nos aniversários. Mas quando um morre perguntando por vc, e te avisam, não tem como vc deixar de ir... Sou herege mas não sou desprovida de sentimento, infelizmente...
Fui...

Eram vinte crentes ávidos, famintos, feito lobos para me devorarem com seus argumentos. Se nao aproveitassem esta oportunidade, sabe-se lá se a teriam de novo algum dia. O vinte e um estava morto. Tão morto como um herege estaria. Mas era ele o cabeça da família. Fora ele quem encaminhou todos ao "caminho do Senhor". Mesmo assim não o respeitaram. O alvo era eu. Chamei mais a atenção do que o defunto.
Cheguei, cumprimentei a todos com um aceno de cabeça e fui para o lado do caixão. Olhei o morto; meu tio que lembrou de mim só quando estava à beira da morte e  coloquei minhas mãos sobre as mãos geladas dele como que numa despedida, ou como querendo dizer que não me importava de que tivesse me esquecido por tanto tempo, e saí para a varanda.
Atrás de mim vieram três... Tres primos igualmente fanáticos. Só a aproximação deles causava-me sufoco. Cheiravam à bíblia velha, mal lida e muito manuseada. Me encostei na mureta, eles se aproximaram. Um por um me deu um abraço. Abraço rápido como se minha heresia fosse contagiosa.
Um deles disse: - nossa, mas você sumiu, hein? - esquecido de que eles mesmos me afastaram quando não quis acompanha-los à igreja. Até que insisti em conservar a amizade, pois eram meus únicos parentes na face da terra, (além dos símios), mas não havia como lhes cair nas graças, se não pensasse como eles...
Um mais atrevido perguntou: e você está indo para a Igreja ou continua descrente?
Pensei comigo: " demorou menos do que o previsto para iniciarem o assunto".  Respondi de forma natural e tranquila: - não, não frequento nenhuma Igreja. Ao que o interlocutor retrucou: "mas vc precisa de uma igreja, de um lugar onde buscar forças, ouvir as mensagens divinas"....
Um velório não é o melhor lugar para se discutir sobre tais assuntos, mas eles não escolhem lugar... e não querendo iniciar nenhuma discussão acalorada, tão imprópria, apenas ri um riso curto, e falei: - Vivo muito bem sem nem um outro humano  a me orientar, minha própria  consciência é quem me orienta...isto  me basta.
Hereges têm consciência? Pareceu-me ouvir os pensamentos do grupo, que agora já eram seis, pois como eu disse, eu chamei mais a atenção que o morto.Mantinham-se ladeando o caixão do defunto até me reconhecerem na varanda, aí era batata... corriam pra lá...
- O importante é acreditar em Deus! - disse uma prima pentecostal, tentando descobrir se eu acreditava no mesmo deus deles.
- Não concordo. (arrisquei sabendo que poderia botar fuzuê naquele velório, esta raça fica louca quando contrariada)
Não deu outra, ela alterou a voz, e disse:
- Como assim não concorda? Por acaso somos alguma coisa sem Deus, o que seria de nós se não acreditássemos nele? - Ela falou tão alto que os que estavam na sala velando o morto, olharam para a varanda aturdidos.
Não preciso nem dizer que o número dos que me ladeavam agora aumentou,  já eram doze... outros primos vieram em socorro àquela que se alterou...
- Não concordo que o importante é acreditar em deus, pelo seguinte: maior número de estupradores, ladrões, criminosos, e praticantes das maiores crueldades acreditam em deus. Então, acreditar em deus não lhes foi importante para uma vida digna.
Eles nao ficam sem resposta, nem que seja para falar qualquer merda, eles falam, só para não dizerem que ficaram sem resposta.
- Não é bem assim, eles acreditavam em Deus mas não o temiam...
-  Ah, então o importante é temê-lo... disse eu sem pestanejar...
-  Quem serve a Deus, o ama,o obedece e o teme...continuou o mesmo fanático.
-  Que coisa pavorosa! - eu disse-
Exaltado mais do que seria preciso, este mesmo fanático respondeu:
- Pavoroso é seu modo de pensar...
- Voce nao sabe o que eu penso...
- Quem não acredita nem teme a Deus nao pode pensar boa coisa...
E uma outra prima fanática que tinha se mantido num canto observando com cara fechada, enfim se expressou:
- Você deturpa tudo....( interessante que essa observação já me era esperada, é assim que todos eles dizem quando queremos mostrar nosso ponto de vista sobre as coisas que eles acreditam)
-Sim, deturpo, distorço, não entendo, sou cega, ímpia, pagã, herege...Voces poderiam se poupar de toda esta falação repetitiva, pois sei já, de todos os adjetivos que usam contra os que não seguem a mesma religião que voces.

-Uma prima, a mais jovem, apareceu com o filho nos braços, eu ainda não conhecia e me aproximei. Notei que o menino usava próteses nas duas perninhas. Ela me olhou de uma forma, que me senti como se fosse eu que tivesse feito o menino nascer defeituoso... Mas falou o contrário:
- Voce acha, que eu suportaria todo este sofrimento se não tivesse minha fé firmada em Deus? Você nunca teve um filho defeituoso, nem sabe o quanto dói no coração de uma mãe, se tivesse, também procuraria a Deus.
Me surpreendi com o pequeno discurso, e perguntei:
- Pelo contrário, na minha opinião nenhum deus faria uma criança nascer com um defeito que a fizesse sofrer e à sua mãe.
- Ah, você não entende nada mesmo, como se vê... Quem conhece os planos de Deus?
- Voce acha que é plano de deus o seu menino ter nascido assim, o que aliás, eu sinto muitíssimo, é uma criança linda...
- Sim, nada acontece sem a permissão de Deus, nós que não entendemos Seus planos.
- No meu ponto de vista, desculpe-me, um plano bem maldoso!
-Como vc tem coragem de falar isto de Deus?
-Se estivesse em minhas mãos o destino do bebê que vc estivesse gerando, eu jamais teria coragem de fazer seu bebê nascer com esta deficiência. Eu... que sou má, perversa, impia e o escambal...
- Deus é Amor e tem seu plano divino... eu não saberia explicar qual o plano de Deus porque ninguém conhece seus desígnos. Mas para todo sofrimento aqui na Terra, haverá uma recompensa lá no céu.
- Bem, eu não chamaria meus filhos e lhes faria sofrer e padecer, numa casebre imunda, sórdida e passivel de toda doença e sofrimento, para que, se sobrevivessem, sem lamentos, lhes deixasse entrar na casa grande, confortável, junto comigo. Portanto, não faz sentido. Melhor acabarmos nosso assunto por aqui. Sinto muito pelo seu menino...
Ia me retirando quando entrou Lauro, o que com certeza ficaria no lugar do pai morto, aconselhando a família. ( como esta gente precisa de conselhos!) Ele saiu para varanda, zombeteiro, já falando num riso de escárnio:
- Está tentando convencer meus manos ao teu modo desajeitado e incrédulo de levar a vida?
- Não, Lauro, estou apenas respondendo ao que seus manos apresentam como argumentos. Não tenho a mínima intenção de mudar idéia de ninguém.
- E nem vai...- Falou ele mais grosso- " Nossa, quanta hostilidade", pensei... Por que os incomodo tanto pensando diferente? Não fui eu a iniciar o assunto,  mas não me manteria calada feito tonta, ouvindo coisas que não me fazem o menor sentido. Se eles não respeitavam o morto, de quem eram filhos, eu lamentava, mas tinha de responder, mesmo que também  se caracterizasse  uma falta de respeito, entrar na paranóia deles.Solicitar que não falássemos nisto, eu ja havia solicitado, mas quem diz que uma pessoa repleta de uma paixão totalmente irracional e abrasadora consegue segurar-se?
Nisto parou no portão, tres carros, cheirando a novos de longe, um a um manobrou na calçada, enquanto vislumbrados os vinte crentes admiravam o tio Joel e a esposa no primeiro carro, e suas duas filhas, com seus maridos em seus respectivos carros...
- Homem abençoado está aí...disse o Lauro...- e continou- abençoado, próspero, e toda sua familia se deu muito bem na vida.
Olhei para o cerimonial dos referidos descendo do carro e sendo admirados. Daria de dez a zero no cerimonial do defunto saindo para o cemitério...
- Eu chamara a atenção pela heresia, e estes pelo exemplo de fé.
Foi como se de repente eu sentisse todos os holofotes se dirigirem à turma que chegava... me senti um pouco no escuro,mas muito mais confortável para retornar tranquila e dar mais uma olhada no tio alheio de vez a toda aquela hipocrisia. "Ele também estaria admirando os acabados de chegar e lhes sorrindo, se vivo estivesse", pensei e me afastei do caixão...
Nisto, antes de ver ao morto, tio Joel me enxergou: -olha só quem está aqui! Falei um rápido "olá" e dei-lhe um rápido abraço, agora eu que senti medo que toda aquela fé cega fosse contagiosa... ( eu ri com este pensamento) Ele entrou ver o corpo do irmão, fez alguns comentários de que agora ele estava no céu com Deus, e voltou-se a mim novamente, que já  tinha retornado à varanda, pois já se encontrava vazia.
E voce, sobrinha...que experiência tem com Jesus? 
-Nenhuma, e você querido tio?
- Muitas, sou servo fiel do Nosso Senhor, e nele deposito toda minha confiança e fé, e tenho me dado sempre muito bem com isto.Deus é fiel e cumpre todas as suas promessas ( talvez ele disse isto, porque meu carro nao era zerinho como os tres que eles vieram exibir no velório)
-Ah, sim? respondi, que bom! Deus prometeu que quem cresse nele e a ele servisse faria as obras que ele fez, curar, ressuscitar mortos... gostaria de ver isto, tio Joel... Vai e ressuscita seu irmão...
- Não é bem assim, sobrinha, não distorça as coisas( outra vez um crente falando de distorcer qdo alguém nao entende da msma forma q ele quqer coisa)...
-hum... e como é então, tio?
- Deus prova aos seus fiéis, prova sua fé, até que ponto eles aceitam a vontade Dele.
 Minha resposta foi mais rápida do que ele imaginava... pois calou-se totalmente...
- Em Tiago 1-13, está claro, explícito, que deus não prova a ninguém... e estou falando do livro que o senhor considera sagrado...
- mas não é este tipo de provar, e gaguejou mais alguma coisa totalmente desconexa...Mas o que o arrasou visivelmente foi minha citação de seu livro sagrado: A FÉ SEM A OBRA É MORTA, TIO....
meu riso foi tão inconveniente ao vê-lo calar-se e sair de fininho, que mesmo contra minha vontade, escapou-me pelo lado da boca...
Nesta hora uma de suas filhas chegou-se ao pai que estava meio aturdido ainda, ao meu lado, talvez pensando numa resposta, e disse: - Pai, a mãe está com uma insuportável dor de cabeça e pede para que todos nós oremos por ela.
Continuei calada, coisa de família é coisa de família.
-Chame teu marido, tua irmã, tio Lauro e os outros, disse o tio Joel...
E oraram ali na varanda  mesmo pedindo para  que Deus  curasse a dor de cabeça de minha tia...
Outro tio que não sabe calar a boca, me viu de olhos abertos durante a oração, e não aguentou sem perguntar como tive coragem de pelo menos por respeito, de não fechar os olhos!
Coisa de família é coisa de família... mas quando se dirige a mim, aí a coisa muda, me deram a oportunidade, e falei a ele, mas todos ouviram, inclusive minha tia cuja dor de cabeça a incomodava...
- Eu é que fico pasma... Como vocês têm coragem?
Obviamente ninguém entendeu nada. Precisei completar...

Enquanto vcs pedem para deus lhes curar uma dor de cabeça, neste mesmo momento, muitos semelhantes a voces estão em sofrimentos terriveis, dilacerados muitas vezes pela dor da fome a lhes corroer a carne, para mim isto é um desrespeito para com estes seres, tão iguais a nós, aliás, tão nós!
Minha tia, respondeu: Ai eu prefiro nem tomar conhecimento destas imagens tristes que aparecem na televisão, perturba o dia da gente...
Ao que respondi, agora quase injuriada: Mas é a realidade! Fechando os olhos para a realidade é fácil. Olhando em torno apenas de seus umbigos, a vida é maravilhosa... a minha é maravilhosa, mas não consigo ver-me separada dos demais, e se o deus de voces é este que criou aqueles que definham de fome, ou que joga seres a queimar eternamente, prefiro não conhecer este deus, obrigada. Como vcs têm coragem! (repeti), quanta dor no Universo e vcs pedindo pela dor de cabeça da tia Loisa!

Ouvi alguém dizendo: deixa, ela nao entende nada das coisas de Deus! Era Lauro, ele se aproximou de mim e disse: meu pai antes de morrer lembrou de vc, quis ter a oportunidade de te falar da Palavra de Deus... mas não teve tempo. Este foi o último desejo dele. Amava tanto você que quis te converter ao caminho correto, antes de ir-se.
-Ao caminho que ele e alguns outros que pensam como ele acham correto... retruquei.
Me dirigi novamente ao caixão, beijei a testa de meu tio e sussurrei ao seu ouvido: não se incomode, não faria a menor diferença eu ter chegado a tempo...
Não tendo mais nada para fazer ali, deixei os vinte mais os que foram chegando... e fui-me embora, talvez desaparecesse por mais uns vinte anos!


































































12 comentários:

  1. Quem será que distorce uma realidade? E pior: para se sentir melhor e os outros que se ...

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  2. Gostei do texto, parabéns por ter aguentado aquilo tudo.
    Abraço

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  3. Bom acho que os dois agiram de forma extrema, eles por não te respeitar e vc por perde a cabeça quando eles te confrontaram. Mas vc ja tem um pré-conceito sobre os crentes isso seria inevitável. ainda bem que não acredito e nenhum dos dois lados.
    xD

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  4. Eu gostaria de postar uma opinião: primeiro ressaltar que a senhora escreve muito bem, seu texto é rápido de se ler, não é cansativo e é bem sintético (sem ladainhas e repetições).
    Acho que o ateísmo não é delimitação de inteligência nem a religião da falta da mesma.
    Porém, a plenitude da paz no ateísmo requer alguma instrução extra, diferente da mesma na religião.
    Modéstia parte, gostaria de lhe enviar um texto, que eu escrevi, sobre esta questão. Vou passar o link dele, já estou terminando!
    Um abraço!

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  5. Favoritei sem ler, vou beber e qdo voltar aprecio...

    Bela iniciativa

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  6. Lendaker, não é preconceito. Pre conceito é um juizo de algo que vc desconhece. Eu conheci muito de perto, e acho o cúmulo submeterem crianças a assistirem expulsão de demônios, e a ensinarem a elas que o diabo anda rondando ao redor, a fim de tentar-lhes e roubar suas almas. Uma criança teria a mente muito mais saudável sem estas ameaças e medos.
    Como vê, não é preconceito, é uma idéia muito bem formada, pelo que vi, vivi, e concluí...
    obrigada pela participação! Abç!

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  7. Bruno, eu não sirvo para ateia militante, pois me sentiria tal como os religiosos fanáticos, tentando impor uma idéia. Os religiosos devem detestar tanto nossos discursos como detestamos os deles, além do fato de que, falta-lhes conhecimento e raciocínio lógico, para entenderem o que quer que possamos lhes dizer. Mal sabem das falácias que falam, aliás, talvez, alguns nem saibam o que seja uma falácia... rs... Prefiro ficar na minha e só me manifestar realmente quando me "cutucam"...rs gostaria de ler seu texto, sim. Aguardo. Abç!

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  8. Ainda pra o Bruno... lembrei-me agora de que uma amiga(pentecostal) de minha prima, esteve em minha casa e quis me converter com a seguinte "ameaça":
    - E se você quando morrer perceber que eu estava certa, daí vai ser tarde para você, não é?
    Deve ter sido com este discurso que tocaram o coração dela e ela tentou comigo...acredito que ela tentou o melhor que podia dizer pois já me sabia descrente e dificil...
    Até agora rio muito quando lembro: Justo a Falácia de apelo ao medo!!! rs...

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  9. Que pena que eu não estava com vc nesse velório... (Bebeto do orkut)

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  10. Penso que somos responsáveis pelo que cativamos e tenho certeza da colheita. Fica na paz amiga.

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  11. Que pena que eu não estava com vc nesse velório...[2]

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  12. Fé demais não cheira bem, tenho um grupo de rap ateu, porem não me vejo como militante do ateismo, acho que nosso papel como ateus é fazer o que vc fez no velório, discutir apenas com quem se dispõe a discutir ou nos atacar por pensarmos diferente, parabens pela postura e coragem, o bom é que nem todos crentes são assim, por exemplo tenho um amigo evangelico que tambem canta rap e o que prevalesçe entre nós é o repeito.

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